Sumário
1. O jogo da imitação
2. Crítica do novo problema
3. As máquinas implicadas no jogo
4. Computadores digitais
5. A universalidade dos computadores
digitais
6. Opiniões contrárias acerca da
questão principal
(1)
A objeção teológica
(2)
A objeção das "Cabeças na Areia"
(3)
A objeção matemática
(4)
O argumento da consciência
(5)
Argumentos de várias incapacidades
(6)
As objeções de Lady Lovelace
(7)
O argumento da continuidade do sistema nervoso
(8)
O argumento da informalidade do comportamento
(9)
O argumento da percepção extrassensorial
7. Máquinas que aprendem
Referências
1. O jogo de imitação
Proponho
a seguinte questão: “Podem as máquinas pensar?” A consideração disso deveria
ser iniciada com definições do significado dos termos “máquinas” e “pensar”. As
definições poderiam ser ordenadas de modo a refletir, na medida do possível, o
uso comum das palavras, mas tal atitude é perigosa. Se os significados das
palavras "máquina" e "pensar" tiverem de ser encontrados
por meio de um exame de seu uso habitual, será difícil escapar à conclusão de
que o significado da e a resposta à pergunta "Podem as máquinas
pensar?" deverão ser procurados numa pesquisa estatística do tipo Gallup. Mas
isto é absurdo. Em vez de tentar uma definição deste tipo, eu substituiria a
questão por outra, que está relacionada de perto com ela e é expressa em
palavras menos ambíguas.
A
nova formulação do problema pode ser descrita em termos de um jogo a que nós
chamamos "jogo da imitação". É jogado por três pessoas: um homem (A),
uma mulher (B), e um interrogador (C), que pode ser de qualquer dos sexos. O
interrogador permanece num quarto, separado dos outros dois. O objetivo do
jogo, para o interrogador, é determinar, em relação aos outros dois, qual o
homem e qual a mulher. Ele os conhece por rótulos X e Y e no fim do jogo dirá
ou "X é A e Y é B", ou “X é B e Y é A". É permitido ao
interrogador fazer perguntas a A e B, tais como:
C: Será que X poderia me dizer qual o
comprimento de seu cabelo?
Supondo-se
agora que X seja realmente A, então A deverá responder. O objetivo do jogo para
A é tentar induzir C a uma identificação errada. Sua resposta, portanto,
poderia ser:
“Meu cabelo é curto, e os fios mais
longos têm cerca de 20 centímetros de comprimento".
Para
que tons de vozes não ajudem o interrogador, as respostas deveriam ser
escritas, ou ainda melhor, datilografadas. O arranjo ideal é um telegravador
com comunicação entre os dois quartos.
Alternativamente,
a pergunta e as respostas podem ser repetidas por um intermediário. O objetivo
do jogo para a terceira jogadora (B) é ajudar o interrogador. Sua melhor
estratégia será provavelmente dar respostas verdadeiras. Ela pode acrescentar
frases como: “Eu sou a mulher, não escute
a ele”. Mas isso será inútil, porque o homem pode dar respostas
semelhantes.
Agora
formulamos a questão: "O que
acontecerá quando uma máquina ocupar o lugar de A nesse jogo?" Será
que o interrogador decidirá erroneamente com a mesma frequência, quando o jogo
é jogado dessa forma, do que quando o fazia ao tempo em que o jogo era jogado
entre um homem e uma mulher? Estas questões substituem a pergunta original "As máquinas podem pensar?"
2. Crítica do novo problema
Assim
como se pergunta “Qual a resposta para
essa nova forma de pergunta?", pode-se perguntar "Essa nova pergunta é digna de ser investigada?" Tal
questão nós a investigaremos de pronto, com isso atalhando uma regressão
infinita.
O
novo problema tem a vantagem de traçar uma linha bastante nítida entre as
capacidades físicas e intelectuais de um homem. Nenhum engenheiro ou químico
pode alegar ser capaz de produzir um material que seja indistinguível da pele humana.
É possível que algum dia isso possa ser feito, mas mesmo supondo que tal
invenção esteja disponível, deveríamos perceber que há pouca vantagem em tentar
tornar uma “máquina pensante" humana vestindo-a com tal carne artificial. A
forma na qual propusemos o problema reflete esse fato na condição que impede o
interrogador de ver ou tocar os outros competidores, ou ouvir-lhes as vozes.
Algumas outras vantagens do critério proposto podem ser demonstradas por
amostras de perguntas e respostas, tais como:
P: Por favor, escreva-me um soneto cujo tema
seja a "Forth Bridge".
R: Poupe-me isso. Nunca consegui escrever
poesia.
P: Some 34.957 e 70.764.
R:
(Pausa de mais ou menos 30 segundos e depois como resposta) 105.721.
P: Você joga xadrez?
R: Sim.
P: Eu tenho R em meu R1, e nenhuma
outra peça. Você tem somente R no R6 e T no T1. É a sua
vez. Qual o seu lance?
R: (Depois de uma pausa de 15 segundos) T-T8
mate.
O
método de pergunta e resposta parece ser adequado para uso em quase todos os
campos de atividade humana que desejemos abarcar. Não queremos punir a máquina
por sua inabilidade de brilhar em concursos de beleza, nem punir um homem por
perder uma corrida contra um aeroplano. As condições de nosso jogo tornam essas
inaptidões descabidas. As "testemunhas" podem vangloriar-se, se
acharem conveniente, do seu fascínio, força ou heroísmo, mas o interrogador não
pode pedir demonstrações práticas,
O
jogo talvez possa ser criticado sob o pretexto de que as desvantagens pesam
bastante contra a máquina. Se o homem fosse tentar fingir-se de máquina, iria
certamente fazer uma demonstração muito pobre. Iria trair-se imediatamente por
sua lentidão e imprecisão em aritmética. Não podem acaso as máquinas realizar
algo que deveria ser descrito como pensamento, mas que é muito diferente do que
um homem faz? Tal objeção é muito forte, mas ao menos podemos dizer que se, não
obstante, puder-se construir uma máquina capaz de jogar o jogo da imitação
satisfatoriamente, não precisaremos preocupar-nos com semelhante objeção.
Pode-se
alegar que, ao jogar o "jogo da imitação", a melhor estratégia para a
máquina será possivelmente algo que não seja a imitação do comportamento de um
homem. Tal é possível, mas creio ser improvável algo dessa espécie. De qualquer
modo, não intentaremos investigar aqui a teoria do jogo, e admitiremos que a
melhor estratégia será tentar dar as respostas que seriam naturalmente dadas
por um homem.
3. As máquinas implicadas no jogo
A
pergunta que fizemos no § 1 não será totalmente definida antes que
especifiquemos o que pretendemos dizer com a palavra "máquina". É
natural que queiramos permitir que todo tipo de técnica de engenharia seja
usado em nossas máquinas. Também desejaríamos admitir a possibilidade de um
engenheiro ou uma equipe de engenheiros construir uma máquina que funcione, mas
cujo modo de operação não possa ser satisfatoriamente descrito por seus
construtores, porque utilizaram um método em grande parte empírico. Finalmente,
queremos excluir das máquinas todos os homens de carne e osso. É difícil formular
as definições de modo que satisfaçam essas três condições. Poder-se-ia, por
exemplo, insistir que os membros da equipe de engenheiros fossem todos do mesmo
sexo, mas isso não seria de fato satisfatório, porque é provavelmente possível criar
um indivíduo completo a partir de uma única célula de — digamos - pele humana.
Realizar isso seria uma proeza da técnica biológica digna dos maiores elogios,
mas não estaríamos dispostos a considerá-lo como um caso de "construção de
uma Isto nos induz a abandonar o requisito máquina pensante" de que todo
tipo de técnica deveria ser permitido. Estamos tanto mais prontos a abandoná-lo
quanto se sabe que o atual interesse por "máquinas pensantes" foi
despertado por um tipo particular de máquina, geralmente chamado de “computador
eletrônico" ou “computador digital". Seguindo tal sugestão, só permitimos
que computadores digitais tomem parte em nosso jogo.
Essa
restrição parece, à primeira vista, muito drástica. Tentarei mostrar que não é
assim. Mas isso exige uma breve explicação da natureza e propriedade desses
computadores.
Também
se poderia dizer que essa identificação de máquinas com computadores digitais,
tanto quanto nosso critério de “pensar”, só será insatisfatório se (contrariamente
à minha crença), os computadores digitais se revelarem incapazes de uma boa
demonstração no jogo.
Já
há certo número de computadores digitais em funcionamento, e pode-se perguntar “Por que não tentar a experiência
imediatamente? Seria fácil satisfazer as condições do jogo. Certo número de
interrogadores poderia ser usado e uma estatística compilada para mostrar a frequência
com que a identificação certa fosse dada". A resposta imediata é que
não estamos perguntando se todos os computadores digitais fariam boa figura no
jogo nem se os computadores presentemente disponíveis teriam bom desempenho, e
sim se existem computadores imagináveis capazes de tanto. Mas isso é unicamente
a resposta imediata. Veremos a questão mais tarde, sob um aspecto diferente.
4. Computadores digitais
A ideia
que existe atrás de computadores digitais pode ser explicada, dizendo-se que
essas máquinas são planejadas para realizar quaisquer operações passíveis de
serem feitas por um computador humano. O computador humano deve seguir regras
fixas; não tem autoridade para se desviar delas em nenhum detalhe. Podemos
supor que essas regras sejam fornecidas por um livro, alterado sempre que ao
operador se confie novo trabalho. O operador dispõe também de um suprimento
ilimitado de papéis onde fazer seus cálculos. Ele também pode fazer suas multiplicações
e adições numa máquina de calcular de mesa, mas isto não é importante.
Se
usarmos a explicação acima como uma definição, estaremos em perigo de cair num
argumento circular. Nós o evitaremos dando um esboço dos meios pelos quais o
efeito desejado é alcançado. Um computador digital pode ser usualmente visto como
consistindo de três partes:
a) Memória
b) Unidade executiva
c) Controle
b) Unidade executiva
c) Controle
A memória
é uma reserva de informação e corresponde ao papel utilizado pelo computador
humano, seja este a folha de papel onde faz seus cálculos, ou o do livro onde
as regras estão impressas. Na medida em que o computador humano faça cálculos
de cabeça, uma parte da memória corresponderá à sua própria memória.
A
unidade executiva é a parte que realiza as várias operações individuais
envolvidas num cálculo. Quais sejam tais operações individuais é coisa que
poderá variar de máquina para máquina. Normalmente, podem-se fazer longas
operações, tais como "Multiplicar 3.540.675.445 por 7.076.345.687",
mas em algumas máquinas somente algumas operações muito simples, tais como
"Escreva 0", são possíveis.
Mencionamos
que o "livro de regras" fornecido ao computador pode ser substituído
na máquina por uma parte de sua memória. Chama-se então "tabela de
instruções". É dever do controle verificar que essas instruções sejam
obedecidas corretamente e na ordem certa. O controle é construído de tal forma que
isso necessariamente acontece.
As
informações na memória são geralmente fragmentadas em blocos de tamanho
relativamente pequeno. Numa máquina, por exemplo, um bloco pode consistir em 10
algarismos decimais. Atribuem-se números às partes da memória nas quais os
vários blocos de informações são estocados, de alguma forma sistemática. Uma
instrução típica diria: “Adicione o número estocado na posição 6.809 àquele da
4.302 e ponha o resultado de volta na última posição da memória."
Desnecessário
dizer que isso não ocorreria na máquina sob a forma de expressão linguística.
Seria mais provavelmente codificado numa forma tal como 6809430217. Aqui, o 17
nos diz qual das várias alterações possíveis será realizada nos dois números.
Nesse caso, a operação é a descrita acima: “Adicione o número..." Será
notado que a instrução toma 10 algarismos e assim forma um bloco de informação
muito conveniente. O controle normalmente tomará as instruções a serem
obedecidas na ordem das posições nas quais elas estão memorizadas, mas ocasionalmente
uma instrução tal como: "Agora obedeça à instrução memorizada na posição
5606 e continue daí", pode ser encontrada, ou então: "Se a posição
4505 contém 0, obedeça à instrução memorizada em 6707; do contrário,
prossiga".
Instruções
destes últimos tipos são muito importantes porque possibilitam que uma sequência
de operações seja refeita várias vezes até que se satisfaça alguma condição,
mas de forma a obedecer, não instruções novas em cada repetição, mas as mesmas,
seguidamente. Para recorrer a uma analogia doméstica, suponha-se que Mamãe
queira que João passe pelo sapateiro toda manhã, em seu caminho para a escola,
para verificar se os sapatos dela estão prontos; ela pode pedir-lhe isso todas
as manhãs. Alternativamente, ela pode de uma vez por todas afixar um lembrete
na sala de entrada, que ele verá quando for para a escola, e que o lembrará de
perguntar pelos sapatos e também de destruir o lembrete quando trouxer os
sapatos consigo.
O
leitor deve aceitar como fato que computadores digitais podem ser construídos,
e até já foram construídos, de acordo com os princípios que descrevemos, e que
podem de fato muito aproximadamente imitar as ações de um computador humano. O livro de regras a que nos referimos, usado
pelo nosso computador humano, é uma ficção conveniente. Os computadores humanos
lembram, em realidade, o que tenham de fazer.
Se
alguém quiser construir uma máquina que imite o comportamento do computador
humano em alguma operação complexa, terá de perguntar-lhe como ela é feita e
então traduzir a resposta na forma de uma tabela de instruções. A construção de
tabelas de instruções é comumente descrita como "programação". "Programar
uma máquina que realize a operação A" significa colocar a tabela de
instruções apropriada dentro da máquina, de tal forma que esta realize A.
Uma
variante interessante da ideia de um computador digital é a do "computador
digital com um elemento aleatório". Estes têm instruções que envolvem o
lançamento de um dado ou algum processo eletrônico equivalente; uma instrução
que tal poderia ser, por exemplo: “Atire o dado e ponha o número que resultou
na memória 1000". Algumas vezes, tal máquina é descrita como dotada de
livre arbítrio (embora eu pessoalmente não usasse essa frase). É normalmente
impossível determinar, observando-se uma máquina, se ela possui ou não um
elemento aleatório, porque um efeito similar pode ser produzido por artifícios
como fazer escolhas que dependam dos algarismos que compõem a sequência decimal
do número π.
A
maioria dos computadores digitais atuais possui somente uma memória finita. Não
há dificuldade teórica em relação à ideia de um computador com memória
ilimitada. Naturalmente, só uma parte finita pode ter sido usada a qualquer
tempo,
Da mesma
forma, somente uma soma finita pode ter sido construída, mas podemos imaginar
mais e mais parcelas sendo adicionadas, se necessário. Tais computadores têm
interesse teórico especial e serão chamados computadores de capacidade
infinita.
A ideia
de um computador digital é antiga. Charles Babbage, professor de Matemática em
Cambridge, de 1828 a 1839, planejou tal máquina, a chamada Máquina Analítica,
que nunca foi completada. Embora Babbage tivesse todas as ideias essenciais,
sua máquina, na época, não apresentava perspectivas atraentes. A velocidade
então disponível seria certamente maior que a do computador humano, mas era cem
vezes mais vagarosa que a Máquina de Manchester; esta por sua vez, é uma das
mais vagarosas das máquinas modernas. A memória teria de ser puramente
mecânica, por meio de rodas dentadas e cartões.
O
fato de que a Máquina Analítica de Babbage tivesse de ser inteiramente
mecânica, ajuda-nos a livrar-nos de uma superstição. Dá-se frequentemente
importância ao fato de que os computadores digitais modernos são elétricos e de
que o sistema nervoso seja também elétrico. Como a máquina de Babbage não era
elétrica, e como todos os computadores digitais são, em certo sentido,
equivalentes, vemos que tal uso da eletricidade não pode ter importância
teórica. É claro que a eletricidade normalmente aparece quando se trate de
sinalização rápida, de forma que não surpreende a encontremos em ambos os
casos. No sistema nervoso, os fenômenos químicos são tão importantes quanto os
elétricos. Em determinados computadores, o sistema de memória é principalmente
acústico. A característica de usar a eletricidade apresenta assim semelhança
muito superficial. Se quiséssemos achar semelhanças que tais precisaríamos
voltar-nos para as analogias matemáticas de função.
5. A universalidade dos computadores digitais
Os computadores
digitais considerados na última seção podem ser classificados entre as
"máquinas de estado discreto". Estas são as máquinas que se
movimentam por pulos ou estalidos súbitos de um estado bem definido para outro.
Tais estados são suficientemente diferentes para que não haja possibilidade de
confusão entre eles. A rigor, tais máquinas não existem. Tudo, na realidade, se
move continuamente. Mas há muitos tipos de máquinas que podem ser
vantajosamente consideradas máquinas de estado discreto. Por exemplo, quando se
consideram os interruptores de um sistema de iluminação, é uma ficção
conveniente admitir que cada interruptor tenha de estar definitivamente ligado
ou desligado. Deve haver posições intermediárias, mas, para a maioria dos
propósitos, podemos esquecê-las. Como um exemplo de máquina de estado discreto,
podemos considerar uma roda cujas posições se alternem de 120º por segundo, mas
que pode ser detida por uma alavanca operável de fora; ademais, uma lâmpada
acende-se numa das posições da roda. Semelhante máquina pode ser descrita
abstratamente como segue. O estado interno da máquina (que é descrito pela
posição da roda) pode ser q1, q2 ou q3. Há um sinal
de entrada i0 ou i1 (posição da alavanca). O estado
interno a qualquer momento é determinado pelo último estado, e sinal de
entrada, de acordo com a tabela:
Os
sinais de saída, a única indicação externa visível do estado interno (a luz),
são descritos pela tabela:
Este
exemplo é típico das máquinas de estado discreto. Elas podem ser descritas por
tais tabelas sob a condição de que tenham somente um número finito de estados
possíveis.
Parecerá
que, dado o estado inicial da máquina e os sinais de entrada, seja sempre
possível predizer todos os estados futuros. Isto faz lembrar a concepção de
Laplace de que, a partir do estado completo do universo num dado momento de
tempo, tal como descrito pelas posições e velocidades de todas as partículas,
seria possível predizer todos os estados futuros. A predição que estamos
considerando está, contudo, mais próxima da praticabilidade do que a
considerada por Laplace. O sistema do "universo como um todo" é tal
que erros assaz pequenos nas condições iniciais podem ter um efeito esmagador
num tempo posterior. O deslocamento de um simples elétron por um bilionésimo de
centímetro, em determinado momento, pode representar a diferença entre um homem
ser morto por uma avalancha, um ano mais tarde, ou escapar dela. Propriedade
essencial dos sistemas mecânicos a que chamamos "máquinas de estado discreto"
é a de que tal fenômeno não ocorra. Mesmo quando consideramos máquinas físicas
reais, em vez de máquinas idealizadas, um conhecimento razoavelmente preciso do
estado num determinado momento produz conhecimento razoavelmente preciso certo
número de passos mais tarde.
Como
dissemos, os computadores digitais pertencem à classe das máquinas de estado
discreto. Mas o número de estados de que essa máquina é capaz é usualmente
enorme. Por exemplo, para a máquina ora funcionando em Manchester, tal número é
cerca de 2165.000, isto é, cerca de 1050.000. Compare-se isto
com nosso exemplo da roda dentada descrita acima, que possui só três estados.
Não é difícil de ver porque o número de estados deva ser tão imenso. O
computador inclui uma memória que corresponde ao papel usado por um computador humano.
Tem de ser possível escrever na memória qualquer uma das combinações de
símbolos que poderia ter sido escrita no papel. Para simplificar, suponha-se
que somente algarismos de 0 a 9 sejam usados como símbolos. Variações caligráficas
são ignoradas. Suponha-se que se entregue ao computador 100 folhas de papel,
cada qual com 50 linhas, cabendo em cada linha 30 algarismos. Então o número de
estados é 10100x50x30, isto é, 10150.000. Este é
aproximadamente o número de estados de três máquinas de Manchester reunidas. O
logaritmo de base dois do número de estados é usualmente chamado
"capacidade de memória" da máquina. Assim, a máquina de Manchester tem
uma capacidade de memória de cerca de 165.000, e a máquina de roda dentada do
nosso exemplo, cerca de 1,6. Se duas máquinas são acopladas, suas capacidades
têm de ser somadas para obter-se a capacidade da máquina resultante. Isto leva
à possibilidade de enunciados como "A máquina de Manchester contém 64
trilhas magnéticas, cada qual com uma capacidade de 2.560, oito válvulas
eletrônicas com uma capacidade de 1.280.” A memória mista chega a 300, dando
uma capacidade de 174.380.
Dada
a tabela correspondente à máquina de estado discreto, é possível predizer o que
fará. Não há razão para que este cálculo não seja feito por meio de um
computador digital. Conquanto que o cálculo seja feito com suficiente rapidez,
o computador digital pode imitar o comportamento da máquina de estado discreto.
O jogo de imitação poderia então ser jogado com a máquina em questão (como B) e
o computador digital imitador (como A); o interrogador seria incapaz de
distingui-los. Naturalmente, o computador digital tem de ter uma capacidade de
memória adequada, bem como trabalhar com suficiente rapidez. Além disso, tem de
ser programado novamente para cada nova máquina que se deseje imitar.
Descreve-se
essa propriedade especial dos computadores digitais de imitar qualquer máquina
de estado discreto dizendo-se que são máquinas universais. A existência de
máquinas com tais propriedades tem a importante consequência de que,
considerações de velocidade à parte, é desnecessário desenhar novas e
diferentes máquinas para realizar diferentes processos de computação. Eles
podem ser todos levados a cabo com um computador digital, adequadamente
programado para cada caso. Ver-se-á que, em consequência disso, todos os
computadores digitais são, em certo sentido, equivalentes.
Podemos
agora considerar de novo o ponto suscitado no final do § 3. Sugeriu-se,
conjecturalmente, que a questão "Podem as máquinas pensar?" fosse
substituída por “Existem computadores digitais imagináveis que tivessem bom
desempenho no jogo de imitação?" Se quisermos, podemos generalizar e perguntar
"Existem máquinas de estado discreto capazes de bom desempenho?" Mas,
em vista da propriedade de universalidade, verificamos que qualquer uma dessas
perguntas equivale a isto: “Fixemos nossa
atenção num computador digital particular C. É verdade que modificando-se este
computador para obter uma memória adequada, aumentando-lhe convenientemente a
velocidade de ação, e provendo-o de um programa apropriado, C pode ser
preparado para desempenhar satisfatoriamente o papel de A no jogo de imitação, sendo o papel B
desempenhado por um homem?"
6. Opiniões contrárias acerca da questão
principal
Podemos
agora considerar que o terreno foi limpo e que estamos prontos para prosseguir
no debate de nossa questão "Podem as máquinas pensar"? e da variante
dela citada no final da última seção. Não podemos abandonar totalmente a forma
original do problema, porque as opiniões vão diferir quanto a adequação da
substituição, e precisamos, pelo menos, ouvir o que tem a ser dito neste
particular.
As
coisas se tornarão mais simples para o leitor se eu explicar primeiramente
minhas próprias convicções a respeito. Considere-se primeiro a forma mais
acurada da questão. Acredito que, dentro de cerca de 50 anos, será possível
programar computadores, com uma capacidade de memória de cerca de 109
para fazê-los jogar o jogo da imitação tão bem que um interrogador médio não
terá mais de 70% de probabilidade de chegar à identificação correta, após 5
minutos de interrogatório. A pergunta original "Podem as máquinas
pensar?" é, a meu ver, insignificante demais para merecer discussão. Contudo,
acredito que no fim do século, o uso das palavras e a opinião geral esclarecida
estarão tão mudados que se poderá falar de máquinas pensantes sem contradita.
Acredito ainda que não há nenhum benefício em ocultar tais convicções. A noção
popular de que cientistas avançam inexoravelmente de fatos bem estabelecidos
para fatos bem estabelecidos, jamais sendo influenciados por conjecturas não
provadas, está totalmente errada. Desde que se esclareça o que são fatos
provados e o que são conjecturas, nenhum dano pode resultar. As conjecturas são
de grande importância, pois sugerem úteis linhas de investigação.
Considerarei
agora opiniões opostas às minhas.
(1)
A objeção teológica
Pensar
é uma função da alma humana imortal. Deus deu uma alma imortal a todo homem e a
toda mulher, mas a nenhum outro animal ou máquina. Logo, nenhum animal ou
máquina pode pensar. (Possivelmente essa visão é herética. S. Tomás de Aquino [Suma
Teológica], citação de Bertrand Russell (1945, p. 458) afirma que Deus não pode fazer um homem sem alma.
Mas isto não pode ser uma restrição real de Seus poderes, mas unicamente
resultado do fato de que as almas humanas são imortais, e portanto
indestrutíveis).
Sou
incapaz de aceitar mesmo em parte tal argumento, mas tentarei responder em
termos teológicos. Acharia o argumento mais convincente se os animais fossem
postos na mesma classe dos homens, porque há uma diferença bem maior, para mim,
entre o ser animado e o inanimado típicos, do que entre o homem e outros
animais. O caráter arbitrário da visão ortodoxa se evidencia se considerarmos
como deve parecer a um membro de alguma outra comunidade religiosa. Como
encaram os cristãos o pensamento muçulmano de que as mulheres não têm alma? Mas
vamos deixar esse ponto de lado e retornar ao argumento principal. Parece-me
que o argumento citado acima implica uma séria restrição à onipotência do
Todo-poderoso. Admite-se que há certas coisas que Ele não pode fazer, tal como
tornar um igual a dois, mas não deveríamos acreditar que tem a liberdade de
conceber alma a um elefante, se quisesse? Poderíamos espetar que só exercesse
tal poder por via de uma mutação que provesse o elefante de um cérebro
devidamente aperfeiçoado para atender às necessidades de sua alma. Um argumento
de todo semelhante pode ser invocado no caso das máquinas. Talvez pareça
diferente porque é mais difícil de “engolir". Mas isso realmente significa
apenas que acreditamos fosse menos provável que Ele considerasse as
circunstâncias apropriadas para conferir uma alma. As circunstâncias em questão
são discutidas no decorrer deste trabalho. Ao tentar construir tais máquinas
não estaríamos irreverentemente usurpando-Lhe o poder de criar almas, como não
o usurpamos ao procriar crianças: ao contrário, somos, em ambos os casos,
instrumentos de Sua vontade providenciando moradas para as almas que Ele cria.
Entretanto,
isto é mera especulação. Não estou muito impressionado com argumentos
teológicos, quaisquer que sejam as circunstâncias nas quais são utilizados.
Tais argumentos mostraram-se frequentemente insatisfatórios no passado. Na época
de Galileu, sustentou-se que os textos “'O sol se deteve no meio do céu e não
se apressou a pôr-se, quase um dia inteiro." (Josué, cap. 10) e "Ele
lançou os fundamentos da terra, para. que não se movesse em tempo algum."
(Salmos, 104) eram refutações adequadas à teoria de Copérnico. Com o nosso
conhecimento atual, semelhante argumento parece fútil. Quando esse conhecimento
não existia, fazia uma impressão bem diferente.
(2)
A objeção das "Cabeças na Areia"
“As consequências
de máquinas pensantes seriam terríveis. Esperemos e confiemos em que não possam
fazer isso."
Este
argumento é raramente expresso de maneira tão ostensiva quanto na forma acima.
Mas afeta a maioria de nós que pensa assim. Gostaríamos de acreditar que o
Homem é, de alguma maneira sutil, superior ao resto da criação. É melhor que
possa ser mostrado como necessariamente superior, pois aí não há perigo de ele
perder sua posição de comando. A popularidade do argumento teológico está
claramente ligada a esse sentimento. É provável que seja mais forte em pessoas intelectuais,
pois elas valorizam o poder do pensamento mais que outras, e estão mais
inclinadas a basear em tal poder a crença na superioridade do Homem.
Não
creio que esse argumento seja suficientemente substancial para exigir
refutação. Consolo seria mais apropriado: talvez deva ser buscado na
transmigração das almas.
(3)
A objeção matemática
Há
certos resultados da lógica matemática que podem ser usados para mostrar que há
limitações aos poderes das máquinas de estado discreto. O mais conhecido desses
resultados é o teorema de Gödel (1931); mostra que em qualquer sistema lógico
suficientemente poderoso podem-se formular enunciados que não são passíveis de
prova ou refutação dentro do sistema, a menos que possivelmente o próprio
sistema seja inconsistente. Há outros resultados semelhantes devidos a Church
(1936), Kleene ( 1935), Rosser e Turing ( 1937).
Este
último é o mais conveniente para considerar, de vez que diz respeito
diretamente a máquinas, enquanto os outros só podem ser usados num argumento
comparativamente indireto: por exemplo, para usar o argumento de Gödel,
precisamos, ademais, dispor de certos meios de descrever sistemas lógicos em
termos de máquinas, e máquinas em termos de sistemas lógicos. O resultado em
questão se refere a um tipo de máquina que é essencialmente um computador
digital de capacidade infinita. Afirma este resultado que há certas coisas que uma
máquina assim não pode realizar. Se ela estiver aparelhada para dar respostas a
perguntas, como no jogo da imitação, haverá algumas perguntas às quais dará ou
resposta errada ou nenhuma resposta, não importa quanto tempo se lhe conceda para
responder. Haverá certamente muitas questões assim, que não podendo ser
respondidas por uma máquina, poderão ser respondidas de modo satisfatório por
outra. Claro que, de momento, estamos supondo que as perguntas sejam do tipo para
o qual uma resposta "Sim" ou "Não" é adequada, e não perguntas
como "Que acha de Picasso?". As perguntas que sabemos a máquina não
conseguirá responder são deste tipo: "Considere a máquina a seguir
especificada. (...) Responderá ela sempre "Sim" a qualquer
pergunta?" Os pontos devem ser substituídos por uma descrição de alguma
máquina, num modelo-padrão, que poderia ser semelhante ao usado no § 5. Quando
a máquina descrita apresenta relação real comparativamente simples com a
máquina que está sendo interrogada, pode-se demonstrar que a resposta ou é
errada ou nula. Este é o resultado matemático: demonstra-se que prova uma
incapacidade das máquinas à qual o intelecto humano não está sujeito.
A
resposta mais simples a este argumento é a de que, embora esteja estabelecido
que há limitações aos poderes de qualquer máquina específica, enunciou-se
apenas, sem qualquer espécie de prova, que nenhuma limitação desse tipo se
aplica ao intelecto humano. Mas não creio que tal concepção possa ser rejeitada
tão levianamente. Sempre que a qualquer uma dessas máquinas se faz a pergunta
crítica devida, e ela dá uma resposta definida, sabemos que a resposta deverá
estar errada, e isso nos infunde certo sentimento de superioridade. Será esse
sentimento ilusório? É, sem dúvida, assaz genuíno, mas não creio que se lhe
deva dar muita importância. Nós mesmos frequentemente damos respostas erradas a
perguntas, e assim não temos justificativa para estar muito satisfeitos com semelhante
evidência de falibilidade por parte das máquinas. Mais ainda: só nos podemos
sentir superiores, nessa ocasião, relativamente à máquina específica sobre a qual
conquistamos nosso insignificante triunfo. Não se trata de triunfar
simultaneamente sobre todas as máquinas. Em resumo, haverá talvez homens mais
inteligentes do que qualquer máquina dada, mas mesmo então poderão existir
outras máquinas mais inteligentes, e assim por diante.
Os
que defendem o argumento matemático estariam, creio eu, dispostos sobretudo a
aceitar o jogo da imitação como base para discussão. Os que acreditam nas duas
objeções anteriores provavelmente não estariam interessados em critério algum.
(4)
O argumento da consciência
Este
argumento está muito bem expresso no discurso “Lister" do Prof. Jefferson,
de 1949, de onde transcrevo: "Somente quando uma máquina puder escrever
sonetos ou compor concertos por causa de pensamentos ou emoções sentidas, e não
por via de ocorrência casual de símbolos, é que concordaríamos em que a máquina
iguala o cérebro — isto é, que não apenas os escreveu ou compôs como também
sabia que os escrevera. Nenhum mecanismo poderia experimentar (e não meramente
assinalar de modo artificial, por meio de uma engenhoca fácil) prazer pelos
seus êxitos, tristeza quando suas válvulas queimam, deleite ante a lisonja;
sentir-se infeliz por causa de seus erros, encantar-se com o sexo, ficar
irritado ou deprimido por não poder alcançar o que deseja."
Este
argumento parece ser uma negação da validez de nossa prova. De acordo com a
forma mais extremada de tal concepção, a única maneira de a pessoa estar segura
de que a máquina pensa é ser ela a própria máquina e sentir-se pensando. Poderia
então descrever esses sentimentos ao mundo, mas naturalmente não se
justificaria que alguém lhe desse atenção. De modo semelhante, de acordo com a
mesma concepção, a única maneira de saber-se se um homem pensa é ser esse
homem. Trata-se, de fato, do ponto de vista solipsista. Pode ser a concepção
mais lógica a ser sustentada, mas dificulta a comunicação de ideias. A está
sujeito a pensar que “A pensa, mas B não", mas da mesma maneira por que B
acredita que "B pensa, mas A não". Em vez de discutir continuamente tal
questão, é de hábito aceitar-se a convenção cortês de que toda gente pensa.
Tenho
a certeza de que o Prof. Jefferson não deseja adotar esse ponto de vista
extremado e solipsista. Ele provavelmente concordaria em aceitar o jogo da imitação
como uma prova. O jogo .com omissão do jogador B) é frequentemente usado na
prática sob o nome de viva voce, para
descobrir se alguém de fato compreende algo ou se o "decorou como um papagaio".
Vamos ouvir parte de um viva voce:
Interrogador:
No primeiro verso do seu soneto, que diz
"Devo eu te comparar a um dia de verão", "um dia de
primavera" não estaria igualmente bem ou ainda melhor?
Testemunha:
Não tem o número certo de sílabas.
Interrogador:
Que tal "um dia de inverno"?
Metricamente, dá certo.
Testemunha:
Mas ninguém quer ser comparado a um dia
de inverno.
Interrogador:
Por exemplo, você diria que o Sr.
Pickwick faz lembrar o Natal?
Testemunha:
De certo modo.
Interrogador:
Contudo, o Natal é um dia de inverno, e
não creio que o Sr. Pickwick fizesse objeções a essa comparação.
Testemunha:
Não creio que você esteja falando a
sério. Quando se diz "um dia de inverno", quer-se dizer um dia típico
de inverno, não um dia especial como o Natal.
E
assim por diante. O que diria o Prof. Jefferson se a máquina de escrever
sonetos tivesse capacidade para responder assim no viva voce? Não sei se ele consideraria que a máquina estava
"apenas sinalizando artificialmente" tais respostas, se as respostas
fossem tão satisfatórias e compreensivas como na passagem acima, mas não creio
que ele a descrevesse como "uma engenhoca fácil". Esta frase, a meu
ver, visa a designar dispositivos tais como a inclusão, na máquina, da gravação
de alguém a ler um soneto, com um interruptor para ligá-la e desligá-la de
quando em quando. Em suma, penso que a maioria dos que sustentam o argumento da
consciência poderia ser persuadida a abandoná-lo em lugar de ver-se coagida a
assumir uma posição solipsista. Provavelmente, estaria então disposta a aceitar
a nossa prova.
Não
quero dar a impressão de que penso não exista nenhum mistério no que respeita à
consciência. Existe, por exemplo, algo assim como que um paradoxo vinculado às
tentativas de localizá-la. Mas não acredito que tais mistérios tenham de ser
necessariamente resolvidos antes de podermos responder à pergunta que nos
preocupa neste artigo.
(5)
Argumentos de várias incapacidades
Esses
argumentos assumem a forma de "Concordo em que você é capaz de construir
máquinas que façam todas as coisas mencionadas, mas você nunca conseguirá
construir uma máquina que faça X." Numerosas características X são
sugeridas, neste particular. Eis uma seleção delas.
Seja
bondosa, atilada, bela, amigável; tenha iniciativa; tenha senso de humor;
distinga o certo do errado; cometa erros; apaixone-se; delicie-se com morangos
com creme; faça alguém apaixonar-se por você; aprenda com a experiência; use
corretamente as palavras; seja o tema de seus próprios pensamentos; tenha tanta
diversidade de pensamento quanto um homem; faça algo de realmente novo.
Nenhuma
justificativa é, no geral, oferecida para esses enunciados. Creio que estão, na
maior parte, alicerçados no princípio da indução científica. Um homem viu
milhares de máquinas durante a sua vida. Do que observou, tira certo número de
conclusões gerais. As máquinas são feias; cada uma delas foi construída para um
objetivo muito limitado; quando se lhes pede algo um pouco diferente, elas se
tornam inúteis; a variedade de comportamento de qualquer uma delas é muito pequena;
etc. etc. Naturalmente, a conclusão é a de que tais serão, necessariamente,
propriedades das máquinas em geral. Muitas limitações advêm da capacidade de
memória assaz reduzida dessas máquinas (dou por entendido que a ideia de capacidade
de memória seja ampliada de alguma maneira, de forma a abranger outras máquinas
que não as de estado discreto. A definição exata não importa, de vez que não se
pretende nenhuma precisão matemática na presente discussão). Há alguns anos
atrás, quando quase não se falava de computadores digitais, era possível
suscitar muita incredulidade a respeito deles caso se lhes mencionasse as
propriedades sem descrever-lhes a construção. Isso se devia, presumivelmente, a
uma aplicação semelhante do princípio da indução científica. Tais aplicações do
princípio, na maioria dos casos, são evidentemente inconscientes. Uma criança
que já se queimou teme o fogo, e mostra que o teme evitando-o; está aplicando, a
meu ver, o princípio da indução científica. (Claro que eu poderia também
descrever o seu comportamento de muitos outros modos.) As obras e hábitos da
humanidade não parecem ser material muito apropriado a que aplicar a indução
científica. Grande parte do espaço-tempo deve ser investigada, se se quiserem
resultados seguros. De outro modo, podemos decidir (como a maioria das crianças
inglesas), que toda a gente fala inglês, e que é bobagem aprender francês.
Há,
contudo, observações especiais a serem feitas acerca das incapacidades que
foram mencionadas. A incapacidade de saborear morangos com creme talvez tenha impressionado
o leitor como frívola. Possivelmente, pode-se fazer com que uma máquina
saboreie esse prato delicioso, mas tal empenho seria idiota. O que é
importante, no relativo a essa capacidade, é que ela contribua para algumas das
outras capacidades, por exemplo: a dificuldade de ocorrer entre homem e máquina
a mesma espécie de amizade existente entre um homem branco e outro, ou entre
dois homens pretos.
A
alegação de que "as máquinas não podem cometer erros" parece curiosa.
Sente-se a tentação de responder: "Será que elas são piores por causa
disso?" Mas vamos adotar uma atitude mais simpática e procurar ver o que
isso realmente significa. Penso que tal crítica pode ser explicada em termos do
jogo da imitação. Pretende-se que o interrogador possa distinguir a máquina do
homem com simplesmente propor-lhes certo número de problemas de aritmética. A
máquina seria desmascarada devido à sua precisão mortal. A resposta a esse argumento
é simples. A máquina (programada para jogar o jogo) não procuraria dar respostas
corretas aos problemas de aritmética. Introduziria deliberadamente erros, de um
modo calculado a confundir o interrogador. Um defeito mecânico provavelmente se
revelaria através de uma decisão inapropriada quanto a que espécie de erro de
aritmética seria feito. Mesmo tal interpretação da crítica não é
suficientemente simpática. Não dispomos, entretanto, de espaço bastante para
continuar a examiná-la. A meu ver, semelhante crítica deriva de uma confusão
entre dois tipos de erros. Podemos chamar-lhes "erros de
funcionamento" e “erros de conclusão". Os erros de funcionamento são
devidos a uma falha mecânica ou elétrica que faz com que a máquina se comporte
de modo diferente do planejado. Nas discussões filosóficas, prefere-se ignorar
a possibilidade de tais erros; discutem-se então "máquinas
abstratas". Essas máquinas abstratas são antes ficções matemáticas que
objetos físicos. Por definição, são incapazes de erros de funcionamento. Nesse
sentido, podemos dizer realmente que "máquinas nunca podem errar". Erros
de conclusão só podem surgir quando algum significado é atribuído aos sinais de
saída da máquina. A máquina poderia, por exemplo, escrever equações matemáticas
ou frases em inglês.
Quando
uma proposição falsa é escrita, dizemos que a máquina cometeu um erro de
conclusão. Claro que não existe razão alguma para afirmar que a máquina não
possa cometer erro desse tipo. Ela poderia não fazer mais que escrever repetidamente
“0 = 1". Para usar um exemplo menos despropositado, a máquina poderia ter
algum método de tirar conclusões por indução científica. Devemos esperar que
tal método leve ocasionalmente a resultados errôneos.
A
alegação de que uma máquina não pode ser o tema de seu próprio pensamento só
poderia ser respondida, evidentemente, se se lograsse demonstrar que a máquina
tem algum pensamento sobre algum tema. Entretanto, o "tema das operações
de uma máquina" parece de fato significar alguma coisa, pelo menos para as
pessoas que lidam com ela. Se, por exemplo, a máquina estivesse procurando
achar uma solução para a equação X²-40X-11=0, estaríamos tentados a descrever
tal equação como parte do tema da máquina naquele momento. Neste sentido, uma
máquina pode, sem dúvida, ser seu próprio tema. Pode ser usada para participar
na criação dos seus próprios programas, ou para predizer o efeito das
alterações de sua própria estrutura. Pela observação dos resultados de seu
próprio comportamento, pode modificar seus próprios programas, de modo a
alcançar algum objetivo mais eficazmente. Estas são possibilidades do futuro
próximo, não sonhos utópicos.
A
crítica de que uma máquina não pode ter muita diversidade de comportamento é
simplesmente uma maneira de dizer que ela não pode ter muita capacidade de
memória. Até bem recentemente, uma capacidade de memória de mesmo mil dígitos
era coisa muito rara.
As
críticas que estamos aqui considerando são amiúde formas disfarçadas no
argumento da consciência. Em geral, se alguém sustentar que uma máquina pode
fazer uma dessas coisas, e descrever o tipo de método que a máquina poderia
usar, não causaria grande impressão. Pensa-se que o método (qualquer que seja,
pois deve ser mecânico) é realmente pouco importante. Comparem-se os parêntesis
no argumento de Jefferson, citado páginas atrás.
(6)
As objeções de Lady Lovelace
Nossa
informação mais pormenorizada sobre a máquina analítica de Babbage vem de uma
dissertação de Lady Lovelace (1842). Nela, declara-se que "a Máquina Analítica não tem nenhuma
pretensão de criar o que quer que seja. Pode fazer tudo quanto saibamos
ordenar-lhe que faça (o grifo é de Lady Lovelace)." Esse enunciado é
referido por Hartree ( 1949), que acrescenta: "Isso não implica que não seja possível construir equipamento
eletrônico que "pense por si mesmo", ou no qual, em termos
biológicos, alguém possa estabelecer um reflexo condicionado, que serviria de
base para a "aprendizagem". A questão, muito estimulante, de se isso
é ou não possível em princípio, foi sugerida por algum desses recentes
desenvolvimentos. Mas não parece que as máquinas construídas ou projetadas
naquela época tivessem essa propriedade."
Estou
de completo acordo com Hartree neste ponto. Deve-se observar que ele não
sustenta que as máquinas em questão não tinham essa propriedade, mas antes que
os indícios de que dispunha Lady Lovelace não a encorajavam a crer que
tivessem. É muito possível que as máquinas em questão possuíssem, de certo
modo, tal propriedade. Suponhamos que uma máquina de estado discreto a possua.
A Máquina Analítica era um computador digital universal, de forma que, caso sua
capacidade de memória e sua rapidez fossem adequadas, ela poderia, por meio de
uma programação conveniente, ser levada a imitar a máquina em questão. Este
argumento provavelmente não ocorreu à Condessa ou a Babbage. De qualquer modo,
eles não tinham a obrigação de alegar tudo quanto pudesse ser alegado.
A
questão toda pode ser considerada de novo sob a rubrica de máquinas que
aprendem. Uma variante da objeção de Lady Lovelace afirma que a máquina não
pode nunca "fazer algo de realmente novo". A tal argumento poderíamos
opor o velho ditado de que "Não há nada de novo sob o sol". Quem pode
ter a certeza de que a "obra original" que fez não foi simplesmente o
crescimento de uma semente em si plantada pelo ensino ou o efeito de seguir
princípios gerais conhecidos? Uma variante melhor da objeção diz que a máquina
jamais "nos pode pegar de surpresa". Essa afirmativa é um desafio
mais direto e pode ser enfrentada de modo direto. As máquinas me pegam de
surpresa com muita frequência. Isso ocorre em grande parte porque não faço cálculos
suficientes para decidir o que devo esperar que façam, ou antes porque embora
eu faça cálculos, faço-os apressadamente, assumindo riscos. Talvez eu diga
comigo: "Suponho que a voltagem aqui deve ser a mesma de lá; de qualquer
modo, vamos admitir que seja." Naturalmente, engano-me amiúde e o resultado
é uma surpresa para mim, porque, à altura em que o experimento se realiza, tais
suposições foram esquecidas. Estas admissões podem tornar-me vulnerável a
admoestações pelos meus vícios, mas não lançam dúvida alguma sobre a
credibilidade do meu testemunho quanto às surpresas que experimentei.
Não
espero que semelhante resposta possa silenciar o meu crítico. Ele dirá
provavelmente que tais surpresas são devidas a algum ato mental criativo de minha
parte e que não conferem maior mérito à máquina. Isto nos leva de volta ao
argumento da consciência e para longe da ideia de surpresa. É uma linha de
argumentação que devemos considerar encerrada, mas talvez valha notar que a
apreciação de algo como surpreendente requer, de igual maneira, um "ato
mental criativo", quer o acontecimento surpreendente provenha de um homem,
de um livro, de uma máquina ou de qualquer outra coisa.
A
concepção de que as máquinas não podem suscitar surpresas se deve, creio eu, a
uma falácia a que estão particularmente sujeitos filósofos e matemáticos.
Refiro-me à suposição de que, tão logo um fato seja apresentado à mente, todas
as consequências desse fato se impõem à mente simultaneamente com ele. Trata-se
de uma suposição útil em muitas circunstâncias, mas esquece-se facilmente que é
falsa. Uma consequência natural desse esquecimento é a de pensar que não há
mérito algum na simples dedução de consequências a partir de dados e princípios
gerais.
(7)
O argumento da continuidade do sistema nervoso
O
sistema nervoso não é certamente uma máquina de estado discreto. Um pequeno
erro de informação acerca da grandeza de um impulso nervoso que atinja um
neurônio pode influenciar seriamente a grandeza do impulso de saída. Pode-se argumentar
que, sendo assim, não é de esperar seja possível imitar o comportamento do
sistema nervoso com um sistema de estado discreto.
É
verdade que uma máquina de estado discreto tem de ser diferente de uma máquina
contínua. Mas se nos ativermos às condições do jogo da imitação, o interrogador
não será capaz de tirar qualquer vantagem dessa diferença. A situação poderá ser
aclarada se considerarmos outras máquinas contínuas mais simples. Um analisador
diferencial servirá muito bem. (O analisador diferencial é um certo tipo de
máquina que não a de estado discreto, usado em alguns tipos de cálculo.) Alguns
analisadores fornecem suas respostas em forma datilografada, e assim mostram-se
adequados para tomar parte no jogo. Não seria possível a um computador digital
predizer exatamente que respostas o analisador diferencial daria a um problema,
mas ele seria bem capaz de dar o tipo certo de resposta. Por exemplo, se
requisitado a dar o valor de pi (na
verdade, cerca de 3,1416), seria razoável escolher ao acaso entre os valores
3,12, 3,13, 3,14, 3,15, 3,16, com as probabilidades de 0,05, 0,15, 0,55, 0,19,
0,06 (digamos). Nestas circunstâncias, seria muito difícil para o interrogador
distinguir o analisador diferencial de um computador digital.
(8) O argumento da informalidade do comportamento
Não
é possível produzir um conjunto de regras que pretenda descrever o que um homem
deveria fazer em cada circunstância imaginável. Alguém pode, por exemplo, ter
como regra parar quando vê a luz vermelha do semáforo, e prosseguir quando vê o
sinal verde, mas o que aconteceria se, por alguma falha, ambos os sinais
aparecessem conjuntamente? Pode-se talvez decidir que é mais seguro parar. Mas
alguma dificuldade posterior talvez resulte dessa decisão. Tentar oferecer
regras de conduta para abarcar todas as eventualidades, mesmo as oriundas de
semáforos, parece impossível. Com tudo isso eu concordo.
A
partir de tal situação, sustenta-se que não podemos ser máquinas. Tentarei
reproduzir o argumento, mas temo que dificilmente lhe farei justiça. Parece ser
algo assim como: "Se cada homem tivesse um conjunto de regras de conduta
definidas pelas quais regulasse sua vida, não seria melhor do que uma máquina.
Mas não existem tais regras, de modo que os homens não podem ser
máquinas." A premissa menor não é abrangente. Não acredito que o argumento
seja sempre formulado exatamente dessa maneira, mas acredito, não obstante, que
é o argumento usado. Pode, todavia, haver certa confusão entre "regras de
conduta" e "leis de comportamento" a obscurecer a questão. Por
"regras de conduta" quero dizer preceitos tais como "Pare quando
avistar luz vermelha", com base nos quais se pode agir e dos quais se pode
estar consciente. Por "leis de comportamento" quero dizer leis da
natureza aplicadas a um corpo humano, tais como "Se você o beliscar, ele berrará".
Se substituirmos "leis de comportamento que reguIam sua vida" por
"leis de conduta pelos quais ele regula sua vida", no argumento
acima, a premissa menor não é mais insuperável. Pois acreditamos não apenas
seja verdade que ser governado por leis de comportamento implica ser-se algum
tipo de máquina (embora não necessariamente uma máquina de tipo discreto) como
também, inversamente, que ser uma máquina assim implica ser governado por tais
leis. Entretanto, não podemos convencer-nos facilmente da ausência de leis
completas de comportamento, bem como da de regras completas de conduta. A única
maneira que conhecemos de encontrar leis que tais é a observação científica, e
não sabemos absolutamente de quaisquer circunstâncias em que pudéssemos dizer: "Já
investigamos o suficiente. Não existem tais leis."
Podemos
demonstrar mais convincentemente que uma afirmação desse tipo seria
injustificada. Pois suponhamos que pudéssemos estar seguros de encontrar tais
leis caso elas existissem, Então, dada uma máquina de estado discreto, seria
certamente possível descobrir, por observação, o bastante sobre ela para
predizer seu comportamento futuro, e isso dentro de um tempo razoável, digamos
mil anos. Mas não parece ser esse o caso. Estabeleci no computador de
Manchester um pequeno programa que usa somente 1 000 unidades de memória, e no
qual a máquina, alimentada com um número de 16 algarismos, responde com outro
em dois segundos. Eu desafiaria qualquer pessoa a descobrir, com base nessas
respostas, o suficiente acerca do programa para poder predizer quaisquer respostas
a valores não experimentados.
(9)
O argumento da percepção extrassensorial
Presumo
que ao leitor seja familiar a ideia da percepção extrassensorial e o significado
de seus quatro itens: telepatia, clarividência, precognição e psicocinética.
Estes fenômenos perturbadores parecem negar todas as nossas ideias científicas
habituais. Como gostaríamos de desacreditá-los! Infelizmente, os indícios
estatísticos, pelos menos quanto à telepatia, são esmagadores. É muito difícil
recompor nossas ideias para nelas encaixar esses novos fatos. Uma vez que
tenhamos de aceitá-los, não será despropositado acreditar em fantasmas e
espectros. A ideia de que nossos corpos se movem tão-somente de acordo com leis
conhecidas da física, a par de outras ainda não descobertas, mas de alguma
forma semelhantes, seria uma das primeiras a desaparecer.
Esse
argumento é, para mim, muito forte. Pode-se dizer, em resposta, que muitas
teorias científicas parecem permanecer viáveis na prática, a despeito de
colidirem com a PES; que, de fato, se pode viver muito bem se a esquecermos.
Isso é muito pouco confortador, sendo de temer que o pensamento seja exatamente
o tipo de fenômeno em que a PES possa ser especialmente importante.
Um
argumento mais específico, baseado na PES, é formulada como segue: "Joguemos
o jogo da imitação usando como testemunha um homem que seja tão bom como
receptor telepático quanto como computador digital. O interrogador pode fazer
perguntas como: 'A que naipe pertence a carta na minha mão direita?' O homem,
por telepatia ou clarividência, dá a resposta certa 130 vezes em 400
tentativas. A máquina só pode adivinhar ao acaso e talvez conseguir 104
respostas corretas, pelo que o interrogador faz a identificação certa." Há
uma possibilidade interessante, que se abre aqui. Suponhamos que o computador
digital contenha um gerador de números aleatórios. Será natural então usá-lo
para decidir qual a resposta a dar. Mas nesse caso o gerador de números
aleatórios estará sujeito aos poderes psicocinéticos do interrogador. Talvez
esta psicocinética possa fazer com que a máquina adivinhe com maior frequencia
do que a esperável num cálculo de probabilidades, de forma que o interrogador
seria ainda incapaz de fazer a identificação correta. Por outro lado, talvez
ele fosse capaz de adivinhar corretamente, sem fazer pergunta alguma, por meio da
clarividência. Com a PES, tudo pode acontecer.
Se a
telepatia for admitida, será necessário "apertar" a nossa prova.
Poder-se-ia encarar a situação como análoga à que ocorreria se o interrogador
falasse consigo próprio e um dos competidores estivesse à escuta, o ouvido
colado à parede. Colocar os competidores numa "sala à prova de
telepatia" satisfaria todos os requisitos.
7. Máquinas que aprendem
O
leitor terá percebido que eu não disponho de muitos argumentos convincentes de
natureza positiva para sustentar os meus pontos de vista. Se dispusesse, não
teria tido tanto trabalho em apontar as falácias dos pontos de vista
contrários. Enumerarei agora os indícios de que disponho.
Retornemos
por um momento à objeção de Lady Lovelace, que sustenta ser a máquina capaz
tão-somente de fazer o que lhe ordenarmos que faça. Digamos então que um homem
poderia "injetar" uma ideia na máquina e esta responderia em certa medida,
voltando em seguida à imobilidade, como uma corda de piano percutida por um
martelo. Outra analogia seria uma pilha atômica, de tamanho menor que o
crítico: uma ideia injetada corresponderá a um nêutron a entrar na pilha, vindo
de fora. Cada nêutron causará certa perturbação, que por fim desaparecerá. Se,
contudo, o tamanho da pilha for aumentado 0 bastante, a perturbação causada
pelo nêutron entrante muito provavelmente continuará a aumentar até que toda a
pilha seja destruída. Existe, acaso, um fenômeno correspondente para mentes, e
outro para máquinas? Parece haver um para a mente humana. A maioria delas
parece ser “subcrítica", isto é, correspondente, nesta analogia, a pilhas
de tamanho subcrítico. Uma ideia apresentada a uma mente tal dará, em média,
menos de uma ideia em resposta. Pequena proporção é supercrítica.
Uma ideia
apresentada a uma mente dessas pode dar origem a toda uma "teoria",
consistente de ideias secundárias, terciárias e mais remotas. As mentes animais
parecem ser definitivamente subcríticas. Firmados nessa analogia, perguntamos: "Pode-se
fazer com que uma máquina seja supercrítica?"
A
analogia da "casca de cebola" também é útil. Ao considerar as funções
da mente ou do cérebro, encontramos certas operações que podemos explicar em
termos puramente mecânicos. Isto que dizemos não corresponde à mente real: é
uma espécie de casca que temos de retirar se quisermos chegar à mente
verdadeira. Mas então, no que resta, achamos outra casca a ser arrancada, e
assim por diante. Procedendo dessa maneira, chegaremos à mente real ou
acabaremos por chegar à casca que nada contém? Neste caso, a mente toda é mecânica.
(Não seria, entretanto, uma máquina de estado discreto. Já discutimos isso.)
Estes
dois últimos parágrafos não se pretendem argumentos convincentes. Deveriam
antes ser descritos como "recitações destinadas a suscitar crença."
O
único apoio realmente satisfatório que pode ser dado à concepção expressa no
princípio do parágrafo 6 será esperar o fim do século para então realizar o
experimento descrito. Mas o que podemos dizer, entrementes? Que providências devem
ser tomadas desde agora para que o experimento seja bem sucedido?
Como
já expliquei, o problema é principalmente de programação. Progressos de
engenharia terão também de ser feitos, mas parece pouco provável que não venham
a satisfazer as exigências. As estimativas da capacidade de memória do cérebro
variam de 1010 a 1015 dígitos binários (bits). Inclino-me
para valores mais baixos e acredito que apenas uma pequena fração dessa
capacidade seja usada para os tipos superiores de pensamento. A maior parte
dela é provavelmente usada para a retenção de impressões visuais. Eu ficaria
surpreso se mais que 109 bits fossem necessários para atuação
satisfatória no jogo da imitação, pelo menos contra um homem cego. (Nota: a
capacidade da Enciclopédia Britânica, 11ª edição, é de 2 X 109). Uma
capacidade de memória de 107 bits seria uma possibilidade muito
prática, mesmo pelas técnicas atuais. Talvez não seja absolutamente necessário
aumentar a velocidade de operação das máquinas. Setores de máquinas modernas
que podem ser considerados como análogos das células nervosas trabalham cerca
de 1.000 vezes mais rapidamente que elas. Isto proveria uma margem de
segurança, que poderia cobrir perdas de velocidade de muitas origens. Nosso
problema é então descobrir como programar tais máquinas para jogar o jogo da
imitação. No meu ritmo de trabalho atual, produzo cerca de 1.000 dígitos de
programação por dia, de modo que uns 60 operadores, trabalhando sem interrupção
durante cerca de 50 anos, poderiam levar a cabo o trabalho, se não se
desperdiçasse nada. Alguns métodos mais expeditos parecem ser desejáveis.
No
processo de tentar imitar a mente humana adulta, temos de refletir bastante
sobre o processo que a levou até o ponto onde se encontra. Cumpre atentar para
três componentes:
(a)
O estado inicial da mente, isto é, ao nascer;
(b)
A educação que recebeu;
(c)
Outras experiências, que não as descritas como educação, a que foi submetida.
Em
vez de tentar produzir um programa que simule a mente adulta, por que não
tentar produzir um que simule a mente infantil? Se ele fosse então submetido à
educação apropriada, ter-se-ia um cérebro adulto. Presumivelmente, o cérebro da
criança é algo assim como um desses cadernos que se compram em papelaria. Pouco
mecanismo e muitas folhas em branco. (Mecanismo e escrita são, do nosso ponto
de vista, quase sinônimos.) Nossa esperança é a de que haja tão pouco mecanismo
no cérebro da criança que algo que se lhe assemelhe possa ser programado. Numa
primeira aproximação, a soma de trabalho gasto na educação pode ser considerada
equivalente à gasta na educação da criança humana.
Dividimos
assim nosso problema em duas partes: o programa infantil e o processo de
educação. Estas duas partes permanecem intimamente ligadas. Não podemos esperar
encontrar uma boa máquina-criança logo na primeira tentativa. Deve-se experimentar
ensinar uma máquina que tal para ver como ela aprende. Pode-se então tentar
ensinar outra para ver se se sai melhor ou pior. Há uma conexão óbvia entre
esse processo e a evolução, por via destas identificações:
Estrutura da máquina-criança
= material hereditário
Mudanças na máquina-criança = mutações
Seleção natural = juízo do experimentador
Mudanças na máquina-criança = mutações
Seleção natural = juízo do experimentador
Pode-se
esperar, contudo, que este processo seja mais expedito que a evolução. A
sobrevivência do mais apto é um método vagaroso de medir vantagens. O
experimentador, valendo-se da inteligência, deveria ser capaz de acelerá-lo. Igualmente
importante é o fato de que o experimentador não está restrito às mutações
casuais. Se conseguir determinar a causa
de
alguma fraqueza, poderá provavelmente pensar no tipo de mutação apto a
superá-la.
Não
será possível aplicar à máquina exatamente o mesmo processo de ensino que se
aplica a uma criança normal. A máquina, por exemplo, não disporá de pernas;
assim, não se pode pedir-lhe que vá buscar um balde de carvão lá fora.
Possivelmente não terá olhos. Todavia, ainda que essas deficiências sejam superadas
por uma engenharia inteligente, não se poderia mandar a criatura à escola sem
que as outras crianças a escarnecessem. Melhor arranjar-lhe um professor
particular. Não é preciso que nos preocupemos tanto com pernas, olhos etc. O exemplo
de Helen Keller demonstra que a educação é possível desde que a comunicação em
ambas as direções, entre professor e aluno, ocorra de alguma forma.
Normalmente,
associamos punições e recompensas ao processo de ensino. Algumas
máquinas-crianças simples podem ser construídas ou programadas de acordo com
esse tipo de princípio, A máquina tem de ser construída de forma tal que os acontecimentos
que antecedem imediatamente a ocorrência de um sinal de punição sejam de
repetição improvável, ao passo que um sinal de recompensa aumente a
probabilidade de repetição dos acontecimentos que levaram a ela. Estas
definições não pressupõem quaisquer sentimentos por parte da máquina. Fiz
alguns experimentos com uma máquina-criança assim e consegui ensinar-lhe
algumas coisas, mas o método de ensino era muito pouco ortodoxo para que o
experimento pudesse ser considerado realmente bem sucedido.
O
uso de punições e recompensas pode, no melhor dos casos, constituir uma parte
do processo de ensino. Grosso modo, se o professor não dispõe de outro meio de
comunicação com o aluno, a quantidade de informação que pode alcançá-lo, não excede
o número total de recompensas e punições aplicadas. Uma criança que tivesse de
aprender a repetir ' “Casabianca" provavelmente ficaria muito dolorida se
o texto só pudesse ser descoberto por uma técnica de "Vinte
Perguntas" em que cada "Não" assumisse a forma de uma palmada.
Cumpre, por isso, dispor de outros canais de comunicação “não-emotivos". Se
estiverem disponíveis, será possível ensinar uma máquina, através de punições e
recompensas, a obedecer ordens dadas em alguma linguagem, por exemplo uma
linguagem simbólica. Essas ordens deverão ser transmitidas através de canais
"não-emocionais". O uso desta linguagem diminuirá enormemente o
número de recompensas e punições necessárias.
As
opiniões podem variar quanto à complexidade conveniente para a máquina-criança.
Pode-se tentar fazê-la tão simples quanto possível, dentro dos princípios
gerais. Alternativamente, pode-se optar por um sistema completo de inferência lógica
"embutido" (Ou antes "programado", pois a nossa
máquina-criança será programada num computador digital. O sistema lógico,
porém, não precisará ser aprendido). Neste caso, a memória seria ocupada em grande
parte por definições e proposições. As proposições seriam de vários tipos; por
exemplo, fatos bem estabelecidos, conjeturas, teoremas matemáticos
demonstrados, enunciados de autoridade, expressões que tenham a forma lógica de
proposição, mas não de valor-crença. Certas proposições podem ser descritas
como imperativas. A máquina deve ser construída de tal forma que tão logo um
imperativo seja classificado com “bem estabelecido", a ação apropriada
ocorra automaticamente. Para ilustrar isso, suponhamos que o professor diga à
máquina: "Faça agora seus deveres de casa". Isto pode resultar em que
"O professor disse: faça agora seus deveres de casa" seja incluído entre
os fatos bem estabelecidos. Outro fato pode ser: “Tudo o que o professor diz é
verdade". A combinação dos dois fatos pode levar o imperativo “Faça agora
seus deveres de casa" a ser incluído entre os fatos bem estabelecidos, e
isso, dada a construção da máquina, significará que os deveres de casa em verdade
começaram a ser feitos; o efeito, porém, é deveras satisfatório. O processo de
inferência utilizado pela máquina não precisa ser de molde a satisfazer os
lógicos mais exigentes. Pode não haver, por exemplo, hierarquia de tipos. Mas
isso não tem de significar que falácias de tipo ocorram com frequencia assim como
não estamos sujeitos a despencar de penhascos sem cerca Imperativos adequados
(expressos dentro dos de proteção. sistemas, não fazendo parte das regras do
sistema), tais como: "Não use uma classe a menos que seja subclasse de
outra mencionada pelo professor", podem ter efeito similar a: "Não chegue
tão perto da borda do penhasco".
Os
imperativos que podem ser obedecidos por uma máquina não dotada de braços e
pernas estão limitados a ser de caráter assaz intelectual, como no exemplo
acima (fazer os deveres de casa). Importantes entre tais imperativos hão de ser
aqueles que regulam a ordem em que as regras do sistema lógico implicado serão
aplicadas. Porque, a cada estágio, quando alguém está usando um sistema lógico,
há um grande número de escolhas alternativas, qualquer um deles de aplicação
possível no que concerne à obediência das regras do sistema lógico. Essas
escolhas marcam a diferença entre um argumentador brilhante e outro inepto, mas
não a diferença entre um argumentador correto e outro sofismador. Proposições
que conduzam a imperativos dessa espécie poderiam ser: "Quando se mencione
Sócrates, use o silogismo de Barbara", ou: ' 'Se um método é mais rápido
que outro, não use o método mais vagaroso". Algumas destas proposições
podem ser dadas "por autoridade", mas outras podem ser produzidas
pela própria máquina, isto é, por indução científica.
A ideia
de uma máquina que aprende talvez pareça para alguns leitores. Como podem as
regras de operação da máquina mudar? Elas deveriam descrever completamente como
a máquina irá reagir, qualquer que possa ser sua história, quaisquer que sejam
as mudanças que sofra. As regras são, pois, deveras invariantes no tempo. Isto
é bem verdade. A explicação do paradoxo está em que as regras que mudam nos
processos de aprendizagem são de caráter menos pretencioso, aspiram apenas a
uma validade efêmera. O leitor pode compará-las à Constituição dos Estados
Unidos.
Uma
característica importante da máquina que aprende é a de que seu professor
ignorará amiúde a maior parte do que se está passando no interior da máquina,
embora possa até certo ponto predizer o comportamento de sua aluna. Isto se
aplicaria muito mais à educação ulterior de uma máquina originada de uma
máquina-criança de projeto (ou programa) bem experimentado, e contrasta
claramente com o procedimento normal quando se usa uma máquina em operações de
computação: o objetivo é então ter um nítido quadro mental do estado da máquina
a cada momento da computação. Tal objetivo só pode ser alcançado com luta. A
concepção de que “a máquina pode fazer somente aquilo que saibamos como
ordenar-lhe que faça" parece estranha em face disso. (Compare-se com a
afirmação de Lady Lovelace, que não contém a palavra “somente".) A maioria
dos programas que podemos colocar na máquina dará como resultado ela fazer algo
que não consigamos absolutamente entender, ou que consideramos como
comportamento de todo aleatório. É de presumir-se que o comportamento
inteligente consista num desvio do comportamento inteiramente disciplinado
implicado em computação, mas desvio pequeno, que não dê margem a comportamento
aleatório ou a voltas repetitivas, sem objetivo. Outro resultado importante de,
por meio de um processo de ensino e aprendizagem, prepararmos nossa máquina
para seu papel no jogo da imitação é o de que a "falibilidade humana"
será provavelmente omitida de maneira natural, isto é, sem "preparação"
especial. (O leitor deve conciliar isto com o ponto de vista do argumento
número 5, discutido páginas atrás.) Processos aprendidos não propiciam uma
certeza de cem por cento quanto ao resultado; se a propiciassem, não poderiam
ser desaprendidos.
Será
provavelmente sensato incluir um elemento aleatório numa máquina aprendiz. Um
elemento aleatório é bastante útil quando estamos buscando a solução de um
problema. Suponha-se, por exemplo, que queiramos encontrar um número entre 50 e
200 que seja igual ao quadrado da soma de seus algarismos; poderíamos começar
com 51, depois experimentar 52, e continuar assim até encontrar um número que
satisfizesse aquela condição. Alternativamente, poderíamos escolher números ao acaso
até achar um que servisse. Este método tem a desvantagem de que se pode
experimentar o mesmo número duas vezes. Isso não será grande inconveniente se
existirem várias soluções. O método sistemático tem a desvantagem de que pode
haver um enorme bloco sem qualquer solução na região que tem de ser investigada
primeiramente. O processo de aprendizagem pode ser considerado como busca de
uma forma de comportamento que satisfaça ao professor (ou a algum outro
critério). Como provavelmente existe um número muito grande de soluções
satisfatórias; o método aleatório parece ser melhor que o sistemático. Cumpre
notar que ele é usado no processo análogo da evolução. Mas nesta o método
sistemático não é possível. Como se poderiam guardar todas as diferentes
combinações genéticas tentadas, de modo a evitar sua repetição?
É de
esperar que as máquinas acabem por competir com o homem em todos os campos
puramente intelectuais. Quais, porém, os melhores para começar? Mesmo esta é
uma decisão difícil. Muitas pessoas acham que uma atividade assaz abstrata, como
o jogo de xadrez, seria o melhor. Pode-se também sustentar que o mais
conveniente é prover as máquinas dos melhores órgãos sensoriais que o dinheiro
possa comprar, e ensiná-Ia a compreender e falar inglês. Tal processo poderia
acompanhar o do ensino normal de uma criança. Coisas seriam apontadas e
nomeadas etc. Mais uma vez, não sei qual a resposta certa, mas penso que ambos
os enfoques deveriam ser tentados.
Podemos
avistar só um pequeno trecho do caminho à nossa frente, mas ali já vemos muito
do que precisa ser feito.
Referências:
Computer Machinery and Intelligence. The Essential
Turing. Edited by B. Jack Copeland. Clarendon Press. Oxford. 2004. Págs.
441-464.
Computing Machinery and Intelligence. Computers and
Thought. Edward A. Feigenbaum e Julien Seldman (org.). Nova York,McGraw-Hill.
1963. Tradução de Marcia Epstein.
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